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Todos os dias a Arte me toma de assalto e me leva para a Vida Real. Troco palavras, vejo pessoas, vivo um dia após o outro, como se o de ontem não tivesse existido, como se o de amanhã ainda estivesse muito longe de chegar.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Vidas entre pontes

                                                                       Praga, Dez 2018.


Vestindo um longo sobretudo preto espiava de costas para o castelo de Praga a beleza imponente da Ponte Charles. Com os dois pés plantados em uma pedra sabão tentava inutilmente riscar com a ponta do seu sapato polido a rocha que mais parecia aço.
Procurava inspiração, procurava além da névoa daquela tarde algo que lhe aquecesse o sentido de existir. Não levava consigo tristeza, apenas a apatia, a melancolia que é peculiar a todo ser apaixonado e não retribuído. Pensava ser um desperdício sentir tudo aquilo sozinho.
Enquanto caminhava em direção à cidade velha deixava seus dedos passearem nas colunas da ponte castigadas pelo tempo, revezando entre o indicador e o maior de todos o peso dos seus pensamentos.
Olhou atento o trabalho do tempo nas calmas águas do Rio Moldava, batendo e esculpindo vagarosamente sua presença nas pedras centenárias do pé da ponte. Pensou consigo mesmo: “Nunca fui assim, paciente no amor!”.
Na verdade, e muito ao contrário disso, o que lhe separava dos demais amantes era sua capacidade de apaixonar-se tantas vezes pela mesma pessoa em lastros temporais diferentes. Também era bem verdade que sua perspicácia laboral não acompanhava o tolo coração que abrigava.
Havia deixado há mais de dez mil léguas quem tanto amava, por não ser igualmente correspondido resolveu partir.
Encostando a testa no memorial de Santo João Nepomuceno oscilava o pensamento entre viver sem sua fatia de amor ou jogar-se mais uma vez de cabeça naquele sentimento sem recíproca. Pensou em humilhar-se novamente, pensou em quanto já havia dedicado todo seu amor e atenção, pensou que nada disso havia funcionado.
Já era o quadragésimo dia da sua peregrinação, mas não houve um só desses que não pensasse nela, que não escrevesse para ela cartas que talvez jamais entregaria, não houve uma só noite que não procurasse no céu uma estrela que revelasse a ela aquele amor desmedido. Tudo isso mesmo sabendo que ela jamais teria feito o mesmo.
Que todo! Queria retribuição... De tanto amar cegou, não percebia que o amor não pode pedir nada em troca pelo simples privilégio que existe em senti-lo.
Já era tarde e seus passos passaram a ser acelerados, em seu casaco negro reluzia pequenos cristais de neve que aos poucos penetravam as fissuras da linha grossa em forma de gota. Ao observar tal mudança de estado físico sorriu levemente e assegurou que ao menos alguma coisa naquilo tudo estava repleto, quisera estar preenchido como aquela fenda de linha, água e algodão.
Ao reparar seu reflexo no vidro de uma cafeteria na cidade percebeu a afeição trancada, nesse momento refletiu sobre a longa jornada, os açoites do mundo, as belas moças que lhe deram atenção e foram ignoradas, voltou a sentir na boca o sabor das guloseimas mais diferentes que já havia provado, viu além do tempo o que ainda estava por vir, enxergou que o amor para dar certo tem que ser de dois, que de nada vale sacrificar-se em silêncio por um prêmio que ninguém vê, nem mesmo ele.
Foi ali, na beira da calçada, de frente para aquela úmida vitrine que falou para o seu coração e foi ouvido. Jura que escutou os átrios palpitarem em código em quanto lhe dizia que o amor não lhe faria tremer as pernas, nem faria acelerar seus batimentos ao chegar perto, mas lhe traria simplesmente paz.
Talvez fosse exatamente isso o que ele precisasse naquele momento para acovardar-se, para recuar, para bloquear o elefante verde antes que ele o atropelasse de vez, tendo em vista que ele nunca quis fazer parte da sua manada.
O que não faz jus a sua história é que ele nunca foi a escolha dela, mesmo podendo ter sido quem mais a amou. E hoje, em fim, ele percebe que o que foi corda de aço mais parece fio de cabelo.
Pela primeira vez ao longo do tempo, do vento, do frio, do calor, da saudade, percebeu que ele não é quem e o que ela quer e isso deveria ser o bastante para ele parar de sofrer.
É mesmo preciso entender muito sobre si mesmo antes de jurar amor ao outro.


Roberta Moura