Quem sou eu

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Todos os dias a Arte me toma de assalto e me leva para a Vida Real. Troco palavras, vejo pessoas, vivo um dia após o outro, como se o de ontem não tivesse existido, como se o de amanhã ainda estivesse muito longe de chegar.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Quem não pode parar

Londres, 2017.


Passa das 19:00 horas, caminha em sentido contrário a névoa que lhe cortam os lábios de frio
Não vê a rua sobre a qual caminha, não enxerga a calçada, nem o beiral que separa seus pés do meio da estrada
Ela só caminha levando consigo o fluxo dos seus pensamentos nos olhos, não discerne, ou finge não enxergar o que está bem na sua frente
Por tanto não querer enxergar não esperava que uma bigorna apontava para a sua testa há tempos
Fazia frio naquela noite no lado leste da Tower Bright, ela visivelmente cansada, sentou-se faminta, mais que isso, sentia um vazio ensurdecedor
Parada por alguns instantes ela tentava respirava, desentalar as palavras que corriam contra o fluxo mecânico e gástrico do seu corpo
Acende com dificuldade um cigarro de aroma insuportável e com a outra mão apalpa no bolso esquerdo uma garrafa vazia de alegria, acabou-se, mais uma vez
Ela jura que quer parar, mas o enfeite ilusório de um amor que deixou invadir seus sentidos novamente lhe prova o contrário, cai igualmente em seus próprios devaneios
Não está mais lúcida, não quer mais pensar, se recusa a obedecer ordens, apenas acena positivamente com a cabeça quando lhe convém
O certo é que ela não quer mais nada dessa vida medíocre, de bater ponto no trabalho, de chegar em casa todos os dias sozinha, ela não quer mais pensar
E tudo que ela queria era voltar para casa com um sinal positivo da vida, tirar dos seus olhos aqueles tijolos vermelhos que cercavam o bairro e que lhe trancavam feito um labirinto
Foram tantas as palavras que disse, tanta exposição, deu tanto seu coração e seu corpo que parece ter esgotado a fonte de desejo que despertara o animal que silenciosamente lhe habita
Pensou por um momento que sua a caminhada teria chego ao final, tola
Pensou poder descansar seus pés gelados, pensou e pensa demais essa pobre moça
Viajando entre o desejo e a temperança que lhe faz parecer eternamente serviçal, deixou escapar a sua sagrada sanidade
Pensa consigo mesma, “eu não posso chorar” e engole palavras doces como bala de canhão
Concorda, por outro lado, com as cobertas de razão decisões de quem comanda
Ela obedece por não ter mais juízo, por não ter mais forças para lutar contra a realidade que tanto tentou esconder para si mesmo
Hoje, caminha esmo, sem saber para onde está indo, carregando consigo apenas o ecoante instinto de sobrevivência que lhe insiste em dizer: -você não pode parar!


Roberta Moura




Uma carta para ele


Roma, Jan. 2017.

Meu caro amigo
Faz tempo que procuro um jeito de dedicar a essa a tudo isso algumas considerações
Em especial, sobre essa minha necessidade incontrolável de te contar sobre os caminhos pelos quais tenho passado
Não tem sido nada fácil, nada confortável, ter que lidar com essa sensibilidade extrema
Sabe, ninguém perguntou como estão meus dias, nem mesmo se essa tal felicidade tem me visitado
Ninguém me perguntou se estou feliz
Tenho carregado o mundo inteiro em minhas costas e essa bagagem tem pesado um tanto mais que a mim mesmo
Nada que vem de fora me tem atingido, senão a sapiência das especulações e da falta de amor próprio, além dessa sensibilidade e ansiedade extrema
Meu querido, você não tem noção do que a carência é capaz de provocar
As pessoas exigem amor e respeito vestidas de vaidade, insegurança, ciúmes e egoísmo
É realmente lamentável vislumbrar tamanha discordância entre os sentimentos
A posse, a inveja e até mesmo a falta de amor próprio, tudo isso cria uma onda de negatividade terrível, apta a consumir até mesmo as melhores intenções
A carência e a necessidade de pendurar-se em outra vida distrai o foco da realidade e acaba por deturpar o futuro
Confesso que não sei lidar com tudo tentando sustentar a razão costumeira
Quando o ser humano perde a individualidade dos seus sonhos e sentidos passa a viver na aflição, na agonia, no sufoco
Por certo há de haver maior habilidade minha no sentido de contornar tudo isso, mais que isso, há de haver empenho, por isso oro para não faltar vontade de faze-lo

Roberta Moura



Sobre chegadas, regressos e partidas

Berlin, Schönefeld, 2017.


Tomo um café preto e robusto, aqui, na sala de espera desse aeroporto, no meio dos vários nadas que me cercam
Sem saber ao certo onde devo ir, se devo ficar ou como prosseguir eu me intalo de pó, cafeína e água quente
Você puxou o freio de mão da nossa locomotiva e quem capotou fui eu
Que tolice a minha, que burrice, logo eu que assisti de camarote e tantas vezes esse mesmo filme, que confusão é essa na qual mergulho reiterada e conscientemente
Daqui do saguão reparo as pessoas que passam de um lado para o outro, sempre com pressa, como quem sabe onde precisa chegar
Invejo essa segurança, essa autonomia toda
Eu invejo essa disponibilidade, esse lance de escolher o que sentir e medir as consequências com precisão
Na verdade, o problema não é o freio de mão puxado, mas a mão na direção que guia tudo isso, eu não deveria ter me abandonado, entregue assim tão facilmente
Faço listas e desenho um futuro próximo em uma folha de guardanapo
Cai no formato de gota a borra do café, mas ela não desvenda o meu astro
Penso que preciso de um novo CEP, novos rostos, novos sonhos, carimbos no passaporte, novas línguas e linguagens
Percebo que a única coisa que não muda é a figura do seu rosto, esse velho novo rosto que insiste em me seguir
Um rosto gravado na memória do meu coração, que tantas vezes já foi pisoteado pelo mundo e idolatrado por mim
Dono das mãos que puxam o freio, o gatilho e me bloqueiam indo de encontro ao meu tórax, que por vezes me impedem de prosseguir
A moça chama a minha partida no alto-falante e eu gelo dos pés a cabeça
Não porque estou indo embora mais uma vez, mas porque ninguém deseja me impedir
Ninguém para chegar na fila do check-in e gritar o meu nome, ninguém para me pedir em casamento no meio da multidão
Ninguém para me beijar tirando o fôlego e pedir para eu ficar
Que sina essa minha, de dormir depois e acordar antes, por fim dormir sozinha
No fundo eu sei que o mundo é a minha casa e o passaporte da minha felicidade precisa ser validado unicamente por mim
Ainda me falta esse controle, pois eu tendo em perde-lo todas as vezes que vejo o seu rosto
"As coisas não podem ser assim", foi a justificativa dele ao me ouvir
Logo eu, que falava tão pouco e agora me exponho tanto
Quando seus olhos deitam sobre os meus as vezes se dilatam, as vezes me relatam, outras me delatam, noutras me deletam
Tudo me parece fruto do descaso, uma brincadeira sarcástica do destino sob minha invejável liberdade
Nada me convence do óbvio que trago em meu peito, pois tantas vidas que terei as gastarei em atropelamentos, barroadas e capotadas, mas me recusarei a deixar de sentir

Roberta Moura