Amsterdã - 2017
Acorda e ainda é noite
Lentamente abre os olhos, incomodada pela fresta da
janela que transparece a luz do poste em frente da sua casa
Lá fora faz um frio desgraçado, tanto quanto um
amor ressequido pelo desapego, tanto quanto um coração aquariano em desilusão
Ela estica o braço direito afim de alcançar o
criado mudo estrategicamente emendado a cama, ali naquela pequena plataforma
arredondada tem tudo o que mais precisa, restos de uma garrafa de Whisky
barato, meio maço de cigarro, um livro borrado por anotações e gotas de
desespero, um velho isqueiro que escuta com frequência as suas reclamações e
uma garrafa de água vítima da sua frequente desidratação
Deseja não mais levantar, deseja vegetar e cumprir
seu destino ali quieta, parada, inerte ao desejo do mundo em lhe ferrar a
existência
Mas precisa encher a garrafa de Whisky, o maço de
cigarro e completar novamente a garrafa de água
Com um ânimo duvidoso joga-se debaixo do frio
chuveiro de roupa e tudo, talvez isso lhe facilite a higiene, talvez complique
ainda mais o seu estado duvidoso de sanidade
Amarra os cabelos ainda molhados para não ter o
trabalho de pentear, é preciso espera-lo secar, a umidade de Amsterdã não
perdoa
Enquanto engole uma xícara de café fumegante espia
para o lado de fora da janela os primeiros raios de sol surgirem
Poderia ter se emocionado devido a beleza laranja e
horizontal que rasga a paisagem, mas esse tempo já passou
Foram-se os dias em que o céu azul e o sorriso de
uma criança lhe fizeram flexionar os músculos do rosto em sinal de agrado, o
vazio da apatia dominava seus dias e ecoava nas suas noites
Dizem por aí que foi um amor não correspondido,
dizem que caiu da bicicleta e perdeu parte da memória, outros falam que o afeto
lhe foi roubado por um feiticeiro, as pessoas só dizem, sem nada dizer
A verdade é que deixou de sentir aos poucos, na
medida em que seus esforços, amores, crendices e até o apego científico deixou
de fazer sentido, simplesmente foi deixando de sentir
Inicialmente viu como vantagem tal situação, dormia
com homens e mulheres sem qualquer pudor, faltava ao trabalho com a mesma cara
de pau e desculpa esfarrapada, não curtia mais ressacas porque passou a viver
um estado perene e ébrio
Foi vivendo, ou pelo menos era o que achava
Foi devorando pessoas, corações e histórias sem
qualquer sentimentalidade
Fez muita gente chorar e algumas vezes isso lhe
alimentava o ego, o fato de puder despertar nos outros aquilo que ninguém mais
podia fazer com ela
Sentia-se endeusada por esse poder, como se isso
jogasse uma benção sob todos aqueles que se envolvesse em sua teia
Estava imune a vida, sem perceber, isso lhe custou
a existência
Passou a ser apenas uma sombra, uma névoa invisível
e densa que se confundia com a fumaça do seu cigarro que lhe amarelava cada vez
mais o polegar e o indicador
Ela cheirava à passado, à memórias as quais ninguém
quer lembrar, à dor das desilusões, ao ópio do abandono, ao desapego de si
mesmo
Não mais seria, apenas é o que se tem para aquele
momento
Trepa na mesa do escritório com um colega de trabalho
com a mesma empolgação que divide um lanche com um vira-lata sentada no banco
da praça na hora do almoço
Flerta com estranhos com o olhar de pedinte e
astuciosamente convence os desconhecidos de que vale a pena o risco de
conhecerem o estranho que há entre as suas cochas
Ilude sem dizer uma só palavra, sobrevive sem
qualquer comunicação assertiva, fala a penas quando estritamente necessário,
mas sempre diz ao mundo à que veio
Veio mais para confundir que para explicar, mais
para dizer que para falar, não precisa mentir para iludir, não precisa humilhar
para explicar, não precisa de embriaguez para fazer, nem de aparência para
conquistar
E no fim do dia volta para casa com a sensação de
tarefa cumprida, com sua garrafa de Whisky de procedência duvidosa debaixo do
braço esquerdo, disputando espaço com uma baguete francesa
Na cabeça a certeza de que tudo tem o seu destino
certo, assim como o malte engarrafado, o trigo trabalhado, o tabaco fartamente
tragado, as células suicidas do seu franzino corpo frequentemente atacadas
Sem alarme, sem drama, tudo esperando a sua hora,
tudo seguindo o fluxo da certeza ávida que é não sentir
Roberta Moura