Quem sou eu

Minha foto
Todos os dias a Arte me toma de assalto e me leva para a Vida Real. Troco palavras, vejo pessoas, vivo um dia após o outro, como se o de ontem não tivesse existido, como se o de amanhã ainda estivesse muito longe de chegar.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Apenas é

                                                                                               Amsterdã - 2017


Acorda e ainda é noite
Lentamente abre os olhos, incomodada pela fresta da janela que transparece a luz do poste em frente da sua casa
Lá fora faz um frio desgraçado, tanto quanto um amor ressequido pelo desapego, tanto quanto um coração aquariano em desilusão
Ela estica o braço direito afim de alcançar o criado mudo estrategicamente emendado a cama, ali naquela pequena plataforma arredondada tem tudo o que mais precisa, restos de uma garrafa de Whisky barato, meio maço de cigarro, um livro borrado por anotações e gotas de desespero, um velho isqueiro que escuta com frequência as suas reclamações e uma garrafa de água vítima da sua frequente desidratação
Deseja não mais levantar, deseja vegetar e cumprir seu destino ali quieta, parada, inerte ao desejo do mundo em lhe ferrar a existência
Mas precisa encher a garrafa de Whisky, o maço de cigarro e completar novamente a garrafa de água
Com um ânimo duvidoso joga-se debaixo do frio chuveiro de roupa e tudo, talvez isso lhe facilite a higiene, talvez complique ainda mais o seu estado duvidoso de sanidade
Amarra os cabelos ainda molhados para não ter o trabalho de pentear, é preciso espera-lo secar, a umidade de Amsterdã não perdoa
Enquanto engole uma xícara de café fumegante espia para o lado de fora da janela os primeiros raios de sol surgirem
Poderia ter se emocionado devido a beleza laranja e horizontal que rasga a paisagem, mas esse tempo já passou
Foram-se os dias em que o céu azul e o sorriso de uma criança lhe fizeram flexionar os músculos do rosto em sinal de agrado, o vazio da apatia dominava seus dias e ecoava nas suas noites
Dizem por aí que foi um amor não correspondido, dizem que caiu da bicicleta e perdeu parte da memória, outros falam que o afeto lhe foi roubado por um feiticeiro, as pessoas só dizem, sem nada dizer
A verdade é que deixou de sentir aos poucos, na medida em que seus esforços, amores, crendices e até o apego científico deixou de fazer sentido, simplesmente foi deixando de sentir
Inicialmente viu como vantagem tal situação, dormia com homens e mulheres sem qualquer pudor, faltava ao trabalho com a mesma cara de pau e desculpa esfarrapada, não curtia mais ressacas porque passou a viver um estado perene e ébrio
Foi vivendo, ou pelo menos era o que achava
Foi devorando pessoas, corações e histórias sem qualquer sentimentalidade
Fez muita gente chorar e algumas vezes isso lhe alimentava o ego, o fato de puder despertar nos outros aquilo que ninguém mais podia fazer com ela
Sentia-se endeusada por esse poder, como se isso jogasse uma benção sob todos aqueles que se envolvesse em sua teia
Estava imune a vida, sem perceber, isso lhe custou a existência
Passou a ser apenas uma sombra, uma névoa invisível e densa que se confundia com a fumaça do seu cigarro que lhe amarelava cada vez mais o polegar e o indicador
Ela cheirava à passado, à memórias as quais ninguém quer lembrar, à dor das desilusões, ao ópio do abandono, ao desapego de si mesmo
Não mais seria, apenas é o que se tem para aquele momento
Trepa na mesa do escritório com um colega de trabalho com a mesma empolgação que divide um lanche com um vira-lata sentada no banco da praça na hora do almoço
Flerta com estranhos com o olhar de pedinte e astuciosamente convence os desconhecidos de que vale a pena o risco de conhecerem o estranho que há entre as suas cochas
Ilude sem dizer uma só palavra, sobrevive sem qualquer comunicação assertiva, fala a penas quando estritamente necessário, mas sempre diz ao mundo à que veio
Veio mais para confundir que para explicar, mais para dizer que para falar, não precisa mentir para iludir, não precisa humilhar para explicar, não precisa de embriaguez para fazer, nem de aparência para conquistar
E no fim do dia volta para casa com a sensação de tarefa cumprida, com sua garrafa de Whisky de procedência duvidosa debaixo do braço esquerdo, disputando espaço com uma baguete francesa
Na cabeça a certeza de que tudo tem o seu destino certo, assim como o malte engarrafado, o trigo trabalhado, o tabaco fartamente tragado, as células suicidas do seu franzino corpo frequentemente atacadas 
Sem alarme, sem drama, tudo esperando a sua hora, tudo seguindo o fluxo da certeza ávida que é não sentir

Roberta Moura



Procura



Procura quem te procura
Quem não confunde teu coração
Quem não te enche de justificativas, sendo elas verdadeiras ou não
Quem te tem como presente, com gratidão
Procura quem te tem como prioridade, não apenas como mais uma opção
Quem respeita teu silêncio sem soltar da tua mão
Quem fica por vontade, mesmo quando nao há necessidade
Quem monta mesa só para te receber
Procura quem não te julga e sempre se coloca à disposição
Quem sai correndo ao teu primeiro chamado
Quem quer um para sempre com parceria e amizade
Quem sorrir mesmo sem vontade só para te alegrar o coração
Procura quem não se esconde e só te busca na precisão
Quem nem precisa falar para te mostrar a verdade
Quem não te deixa esperando por vaidade
Quem entende que não se brinca com um coração 

Roberta Moura