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Todos os dias a Arte me toma de assalto e me leva para a Vida Real. Troco palavras, vejo pessoas, vivo um dia após o outro, como se o de ontem não tivesse existido, como se o de amanhã ainda estivesse muito longe de chegar.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Sobre Orlando


Edimburgo, Escócia, 2018.


Orlando tomava chá no coração da sala, contemplava o tempo que lhe passava rápido demais e lhe enchia de rugas as mãos. Repara como o tempo não volta, como marca com linhas longitudinais os traços da mão, dizia ele entediado.
Da sala avistava os traços irregulares dos galhos das árvores, que mais lhe pareciam veias de sangue negro. Sofria aquele homem o abandono da mulher amada, como sofria...
Naquele inverno tudo estava mais latente, desde a neve que insistia em cair, quanto a gravidade que não lhe perdoava, representada nas costumeiras dores nas ancas.
Com uma das mãos segurava um antigo exemplar de Um Teto Todo Seu, com a outra mergulhava e submergia a colher na infusão feita de mate torrado, água e tempo, tudo que seria necessário para aquecer o corpo, tendo em vista que sua alma parecia não mais ter remédio que despertasse o calor.
Orlando esperou tanto tempo, toda a vida, sem nada reclamar. Fez planos, pintou a casa, lustrou os móveis, comprou à prestação o sofá que ela tanto queria, moldou a silhueta com a roupa que ela escolhera, mas tudo a debalde. No fundo, bem no fundo, ele sempre soube disso, que prescindiria nela a razão de nunca o pertencer. Que novamente seria posto de lado, como se ele tivesse que pagar karmicamente a missão de tê-la por etapas, nunca para sempre.
Orlando caiu feito um pato nas armadilhas do destino, mesmo conhecendo todos os caminhos e avistando as mensagens na linha do tempo que lhes parecia tentar avisar sobre o que lhe esperava.
Mas meias palavras não bastam para que m carrega uma certeza tão monstruosa quanto o amor que ele sempre sentiu por ela. Talvez não baste todo o alfabeto e uma sequencia de frases compostas ardilosamente de verbos transitivos indiretos. Não basta a gramática, nem mesmo as frases curtas e programadas dela. Ele sempre quis mais que isso, porque sempre teve muito mais para dar.
Mas, mesmo diante de toda a sua loucura de amor, da sua paixão desmedida, do caos que permitiu que se instalasse em si mesmo, não foi o suficiente para desquita-la do marasmo no qual ela lucidamente aceitava sobreviver, com a desculpa de amor, de retribuição.
Talvez a mediocridade da segurança, o pasmo reflexo do “deixar quieto o que está quieto” tenha fisgado os seus dias, talvez Orlando tenha a assustado com suas certezas exageradas.
O que corre nos corredores do distrito é que ele sempre foi demais para ela, ela sabia disso. Ela fez sua escolha, preferiu viver à míngua de amor que há sombra da áurea livre dele.  Mais uma vez ela perdeu a grande chance, o cavalo selado, a devoção total de outros ser humano, ela perdeu muito mais que ele, perdeu a chance de conhecer a vida real.
Aquela sala está vazia agora, sem ela... oxalá possa aparecer viva alma que um dia o-pertença com um amor tão intenso que desperte nele novamente o ensejo de fazer alguém feliz por toda vida.
Talvez isso é o que mais entristeça o nobre rapaz de barba por fazer, e deixa feito um umbral de sentimentos o seu peito, a falta de fé dela, de quem desistiu de saltar para a vida, desistiu de viver.

Roberta Moura




sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Umbrella



Cheiro de manjericão, braços dados
Eu poderia parar o mundo naquele instante
Sair voando pela cidade, até chegar na nova era
Pudera, pudera levar comigo seus doces beijos
Sua fragrância acentuada
Quem dera, quem dera merecesse o céu, ao menos o da sua boca
Pudesse deitar no seu colo sem pressa de sair
Chegar em casa e trancar-me no seu leito de ternura e mansidão
Há poder no amor, há cura!
Amargura não se pode ter, quem tem amor no peito para oferecer
Incompatibilidade de gênero, número e grau
Amor é um, amargura é dois, separados
Mais de trinta e dois dentes, nenhuma polegada a mais é necessária, quando de perto se tem o que precisa, sua morada é o sopro da minha brisa
Calor e fogo perene, alimentado de forno à fogão
É como ter um guarda-chuva, um para raios e ao mesmo tempo invocar todas as forças da natureza 
Canto e danço como doida, esquisita, na palma da sua mão
Conjugando o mesmo verbo de outrora, no presente, contando com essa hora
Majestade sem coroa, juvenil reinado, santo escapulário de devoção é o teu rosto, devoto sou do teu coração
Canção cantarolada pelo brunir do sono, velo teus olhos com um olhar de cão sem dono
Me deixo levar por esses momentos de completo frenesi
Assino a lista de presença do teu mais silencioso encanto
Gravo o teu nome nos meus dias
Passamos a ser uma só palavra, um nome, uma poesia
Somos nós, uma só sílaba átona, gritada pela madrugada
Justiça que tarda mais não falha, prazer em te receber, sempre leve, nunca de mãos atadas
Para ser sempre a sua cúmplice, amada, amiga, namorada

Roberta Moura



Fantasia Real

Londres, 2019.

Fantasia do meu ego
Quero tudo teu
A formação do sistema solar rodeando teus olhos
Quero teu colo, que na verdade é meu
Sou teu espelho, tua vaidade, sou outro você
Quero tuas veias, o sangue que circunda as vielas do teu apetecer
Vinde ao meu auxílio, aspirar da minha devoção
Quero o teu fervor, o calor de tuas mãos
Olha nos meus olhos e te encontres por lá
Quero a tua lucidez verdadeira, a tua subida, segurar a tua escada
Não quero precisar te segurar, não te quero ver cair no chão
Quero tua luz que me irradia, quero tua volição, teu perfume, mergulhar a tua guia na minha mais forte aspiração
Ser seu pão de cada dia, seu tudo, seu descansar, sua agonia
Quero os teus sentidos mais profundos, proteger a tua casa, desenhar o teu mundo
De tanto querer as vezes silencio, não digo o que quero, as vezes repito
Onde estamos nós, dentro ou fora do abismo, imbuídos nessas lacunas de falsas informações
Seu querer me espera e de longe avista a esperança na janela
Espia com devoção a minha mais recente chegada, a volta para casa, meu sublime torrão
Meu querer é seu sossego, sua certeza mais profunda, a nuance da sua pele e meu couro reluzente, na boca o beijo mais profundo
Somos além desses problemas, somos retrógrados vivendo nesse mundo
Esperando o sol que nasce de madrugada e a nave que nos leve para o outro mundo
Construa o seu caminho de volta com as migalhas que te dei outrora, para que encontre o verdadeiro banquete que te espera, no meu peito seu amor não paga mora
Fique atento no que te digo, os sinais não mudam a história, somente o querer mais profundo é capaz de oferecer a reviravolta
Vejamos o que podemos fazer no limiar dessa velha, nova e perene fábula
Rejeite o sossego desprovido, o beijo do amigo e um amor que se reduz a memórias
Mantenha quente o peito e nutrido o amor que te faz caminhar, que te torna invisível aos olhos do bandido, que te eterniza na história
Seja meu prazer inquieto, meu calar mais perpétuo, minha exatidão

Roberta Moura