A recordação que tenho daquele dia é a cor caramelo
dos seus olhos, como se eles estivessem por todo esse tempo maturando para
poder me olhar novamente
Parece que foi ontem, e o pior é que parece que foi
ontem mesmo
Essa coisa de tempo é engraçada para mim, eu
poderia passar um dia todo contemplando o seu mau humor, as suas curvas, as
marcas que o tempo fez no seu rosto, as suas cicatrizes, todas elas,
indiscutivelmente, todas elas de uma só vez
A gente não pode deixar de dizer o que tem que
dizer, fazer o que tem que fazer e já faz tanto tempo que meu maior receio é
que ela volte a esquecer
Naquele dia havia um brilho no seu olhar que quase
me cegou, na verdade, quero parecer que não, mas já estou cego novamente e há
muito tempo o diagnóstico é o mesmo
É como se as minhas pálpebras não pudessem resistir
ao imã do seu olhar, como se o olfato não pudesse evitar o ar que rodeia a sua presença,
como se a mão tivesse obrigação de toca-la, como se meu corpo reagisse e
somente existisse em seu favor
Ali deitada me parece uma miragem, me esperando,
querendo cada segundo, desejando profundamente nosso momento
Um garoto, eu não passo de um garoto na sua presença
E a órbita se abriu, o céu soprou ao nosso favor, a
terra tremeu ou foram minhas pernas cujos movimentos não consigo mais
sincronizar sem os seus paços
Tudo isso diante dela, daquele olhar que me faz
congelar, toda minha complacência, tudo, o tudo que não cabe em mim, que tem
que sair para poder acalmar, surtar para poder alcançar
O meu rosto já não é o mesmo, minhas ancas, meu
peso, meu fôlego, tudo isso faz parte do complexo amor que nos guiou até aqui
Como tocar o mesmo instrumento, apreciando os desafinos, corrigindo as claves e em um momento de pleno
frenesi compor uma nova canção, que nos eternize de vez
Há um preço tão caro a ser pago, tantas pedras
deixadas pelo caminho, as quais fazemos questão de catá-las, uma por uma, para
com elas edificarmos o lar que nos verá adormecer e despertar todos os dias com
novos sonhos
Eu a enxergo com os olhos da alma, como quem tenta
tirar toda dor, todo sofrimento que eu já fiz chegar ou que um outro provocou
Como se eu tivesse que fazer, como fosse tomada por
essa posse Divina afim de arrancar as raízes dessas dores, para isso me fiz
revestida de tantas camadas e armaduras que quase não me enxergo por alguns instantes
Faz tanto tempo e foi ontem, com o passar dos dias,
dos anos, dos danos, das décadas, a gente percebe que ninguém sabe nada sobre
ninguém mas é preciso aprender a começar de novo e reconhecer a ignorância de
cada um sobre a vida alheia, mesmo que o alheio seja o amor
Um à um a gente vai percebendo, ou melhor, o coração
vai escolhendo e afunilando o que a gente reconhece como lar, quem a gente ama acima de
tudo
Quem mais sabe é quem reconhece a cegueira e
adapta-se ao submundo da ignorância, porque é bem melhor esperar tudo de todo
mundo que ser surpreendido do nada, com quem a gente acha que conhece
E assim a gente vai se achando, se segurando,
trincando os dentes, se encaixando, se escondendo, se reencontrando
Todas as vezes que o seu coração quebrou meu colo
foi o seu consolo, vi tantas vezes esse doloroso momento que sei ao certo a
duração do espetáculo, a hora de sair do palco, fechar as cortinas e deixar o show da vida continuar
Mas tudo nela parece permanecer, ou eu que vejo o
infinito no seu perfil mais bonito, assim me permito florescer
A cabeça encostada no meu ombro, os dedos se tocando,
cada ponta, casa falange que se aproxima
Não há presente que suporte a sua distância, não há
pressa maior que a ausência da nossa esperança, porque “ser” do outro, faz tempo
que já “somos”
Roberta Moura