Quem sou eu

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Todos os dias a Arte me toma de assalto e me leva para a Vida Real. Troco palavras, vejo pessoas, vivo um dia após o outro, como se o de ontem não tivesse existido, como se o de amanhã ainda estivesse muito longe de chegar.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Um garoto




A recordação que tenho daquele dia é a cor caramelo dos seus olhos, como se eles estivessem  por todo esse tempo maturando para poder me olhar novamente
Parece que foi ontem, e o pior é que parece que foi ontem mesmo
Essa coisa de tempo é engraçada para mim, eu poderia passar um dia todo contemplando o seu mau humor, as suas curvas, as marcas que o tempo fez no seu rosto, as suas cicatrizes, todas elas, indiscutivelmente, todas elas de uma só vez
A gente não pode deixar de dizer o que tem que dizer, fazer o que tem que fazer e já faz tanto tempo que meu maior receio é que ela volte a esquecer
Naquele dia havia um brilho no seu olhar que quase me cegou, na verdade, quero parecer que não, mas já estou cego novamente e há muito tempo o diagnóstico é o mesmo
É como se as minhas pálpebras não pudessem resistir ao imã do seu olhar, como se o olfato não pudesse evitar o ar que rodeia a sua presença, como se a mão tivesse obrigação de toca-la, como se meu corpo reagisse e somente existisse em seu favor
Ali deitada me parece uma miragem, me esperando, querendo cada segundo, desejando profundamente nosso momento
Um garoto, eu não passo de um garoto na sua presença
E a órbita se abriu, o céu soprou ao nosso favor, a terra tremeu ou foram minhas pernas cujos movimentos não consigo mais sincronizar sem os seus paços
Tudo isso diante dela, daquele olhar que me faz congelar, toda minha complacência, tudo, o tudo que não cabe em mim, que tem que sair para poder acalmar, surtar para poder alcançar
O meu rosto já não é o mesmo, minhas ancas, meu peso, meu fôlego, tudo isso faz parte do  complexo amor que nos guiou até aqui
Como tocar o mesmo instrumento, apreciando os desafinos, corrigindo as claves e em um momento de pleno frenesi compor uma nova canção, que nos eternize de vez
Há um preço tão caro a ser pago, tantas pedras deixadas pelo caminho, as quais fazemos questão de catá-las, uma por uma, para com elas edificarmos o lar que nos verá adormecer e despertar todos os dias com novos sonhos
Eu a enxergo com os olhos da alma, como quem tenta tirar toda dor, todo sofrimento que eu já fiz chegar ou que um outro provocou
Como se eu tivesse que fazer, como fosse tomada por essa posse Divina afim de arrancar as raízes dessas dores, para isso me fiz revestida de tantas camadas e armaduras que quase não me enxergo por alguns instantes 
Faz tanto tempo e foi ontem, com o passar dos dias, dos anos, dos danos, das décadas, a gente percebe que ninguém sabe nada sobre ninguém mas é preciso aprender a começar de novo e reconhecer a ignorância de cada um sobre a vida alheia, mesmo que o alheio seja o amor
Um à um a gente vai percebendo, ou melhor, o coração vai escolhendo e afunilando o que a gente reconhece como lar, quem a gente ama acima de tudo
Quem mais sabe é quem reconhece a cegueira e adapta-se ao submundo da ignorância, porque é bem melhor esperar tudo de todo mundo que ser surpreendido do nada, com quem a gente acha que conhece
E assim a gente vai se achando, se segurando, trincando os dentes, se encaixando, se escondendo, se reencontrando
Todas as vezes que o seu coração quebrou meu colo foi o seu consolo, vi tantas vezes esse doloroso momento que sei ao certo a duração do espetáculo, a hora de sair do palco, fechar as cortinas e deixar o show da vida continuar
Mas tudo nela parece permanecer, ou eu que vejo o infinito no seu perfil mais bonito, assim me permito florescer
A cabeça encostada no meu ombro, os dedos se tocando, cada ponta, casa falange que se aproxima
Não há presente que suporte a sua distância, não há pressa maior que a ausência da nossa esperança, porque “ser” do outro, faz tempo que já “somos”

Roberta Moura



segunda-feira, 10 de junho de 2019

ContemplAmar



Havia areia, água e sal
Havia sol, mas também sombra
Haviam quatro pernas curvadas, de frente para o mar e quatro braços voltados para a mesma posição
Haviam alianças mas não estavam nas mãos esquerdas, promessas feitas
Haviam sentimentos e não mais ressentimentos
Havia um longo passado e quem sabe um futuro, havia um presente contínuo e assustadoramente lindo
Haviam olhos nos olhos, canção tocando na cabeça, silêncio da boca, arrepio na nuca e gritos nos poros
Havia um desejo tamanho que não cabia em dois peitos separados, queria expulsar as roupas, explodir o resto do mundo, mesmo o resto do mundo tendo sido tão maravilhoso com ambos
Havia todo tempo do mundo, mas também havia pressa
Havia medo, respeito e companheirismo
Havia gratidão e mais medo, há como havia medo
Havia medo de tudo, do que é novo, do que é velho, medo da inconsistência, da indecência que é sentir
Haviam palavras sem som, vozes sem pessoas, pronome oculto que se esconde sobre o desenhar dessas letras
Havia um amor tamanho que insiste em florescer
Haviam olhares, calma e desejo
Havia um oceano inteiro, límpido, virgem, trepidante, contemplativo, único
Havia empatia e sincronicidade, havia sororidade
É verbo sem carne, e desejo sem pele, é sentido sem razão
É textura, cheiro e olhos que se penetram
É um amor infinito, o mais bonito de todos, a dedicação de duas vidas a arte de amar
Tudo isso era tudo o que havia
Tudo isso é o que há

Roberta Moura